CRISPR – o Santo Graal da Engenharia Genética

 (copyright: oconsultorempates + unsplash) 

Afinal, o que é CRISPR?

CRISPR (também conhecido como “CRISPR/Cas9“, lê-se “crisper”) vem do inglês “clusters regularly interespaced palindromic repeats”, que por sua vez, significa: aglomerados de repetições regulares palindômicas no genoma. O CRISPR foi observado pela primeira vez em bactérias Escherichia Coli. Estas bactérias usam o CRISPR como uma estratégia para reconhecer ácidos nucleicos desconhecidos e se defender contra invasores, sobretudo, os vírus. As referidas bactérias são capazes de reconhecer e picotar o elemento genético invasor, inutilizando esse material e incorporando parte do material picotado para, assim, se precaver de futuros ataques.

A partir da descoberta em células procariotas (bactérias), cientistas propuseram e testaram o uso desta poderosa ferramenta como algo manipulável, controlável e capaz de editar DNA de seres eucariotas (organismos mais complexos, como as células humanas) no laboratório. Assim, nasce o CRISPR como invenção patenteada pela possibilidade de se aplicar esta ferramenta não apenas em células contidas em tubos de ensaio mas também em células de organismos vivos para fins de edição genética.

A melhor explicação de como o CRISPR / Cas9 funciona talvez seja esta: como uma ferramenta de edição de genoma (i.e. DNA) dirigida por RNA, que permite que pesquisadores façam modificações (inserções, deleções ou mutações pontuais) em locais específicos do genoma-alvo em linhagens de células in vitro, em animais e eventualmente até em seres humanos. A técnica envolve duas moléculas que são introduzidas na célula a ter seu genoma editado, Cas9 e RNA guia, que em conjunto promovem uma alteração no  DNA-alvo. Cas9 é uma enzima que age como “tesoura molecular” para cortar as duas fitas do DNA-alvo em um local específico do genoma, permitindo que novas sequencias de DNA sejam introduzidas ou removidas pelo próprio sistema de reparo de DNA da célula. O RNA guia, ou gRNA, contém uma sequência particular de 20 nucleotídeos que é complementar ao DNA-alvo e que serve, portanto, para guiar a Cas9 para o local do DNA a ser editado.

Assim, o gRNA só se ligará a uma porção específica do DNA-alvo se houver complementariedade de bases entre eles, guiando a tesoura (Cas9) para o local a ser cortado. Contudo, a tesoura só irá cortar o DNA-alvo se houver nele uma sequência específica de 3 nucleotídeos (conhecida como “PAM”) adjacente e à jusante dos 20 nucleotídeos reconhecidos pelo gRNA. Uma vez feito o corte da dupla fita de DNA, a célula alvo determina que o DNA foi danificado e, em seguida, inicia a sua reparação. Durante este processo de reparação, é frequentemente a inserção ou deleção de pares de bases que promovem uma mutação permanente no genoma. Mutações no DNA – até mesmo as menores delas – podem levar o gene a não funcionar adequadamente ou não funcionar de forma alguma. Essas mutações são o que os cientistas buscam criar e estudar quando usam CRISPR. Além disso, o DNA pode se reparar utilizando um modelo (uma sequência de DNA que se deseja introduzir no genoma a ser editado). Se o cientista fornecer o modelo, o genoma pode ser editado para criar praticamente qualquer sequência em praticamente qualquer local escolhido. Essas técnicas de reparo podem dar ao pesquisador a capacidade de ativar e desativar os genes como quiserem, abrindo uma ampla gama de possibilidades de aplicação do CRISPR.

Antes da era CRISPR, a edição dirigida de genes em organismos vivos podia ser realizada pela expressão ectópica de nucleases de proteínas artificiais, tipicamente, nucleases “Zinc finger” (ZFNs) ou nucleases efetoras semelhantes a ativadores de transcrição (TALENs) projetadas individualmente para reconhecer um local de DNA alvo específico e introduzir uma fita dupla. Porém, estas técnicas são mais trabalhosas, custam tempo e dinheiro, não sendo sempre efetivas. Apesar de apresentar alguns desafios técnicos de aplicação in vivo, há diversos estudos mostrando efetividade da técnica CRISPR em camundongos.

CRISPR – uma invenção disruptiva

Com a descoberta de tecnologias de DNA recombinante nos anos 70, cientistas de todo o mundo foram capazes de manipular moléculas de DNA. Recentemente, avanços em engenharia do genoma estão provocando uma nova revolução na pesquisa biológica. Em vez de estudar o DNA retirado do genoma, os pesquisadores agora podem editar ou modular diretamente a função das sequências de DNA em seu contexto endógeno em praticamente qualquer organismo de escolha, permitindo a elucidação da organização funcional dos genes dentro do sistema, ou seja, no próprio organismo vivo. Este tipo de possibilidade tecnológica representa o avanço promovido pelo CRISPR.

A ideia de que algum tipo de ferramenta molecular poderia acelerar o campo da terapia genética é uma fonte importante de entusiasmo nos círculos científicos e de biotecnologia. Assim, a capacidade de eliminar, substituir ou modificar sequências dentro de um genoma de maneira altamente direcionada (ou seja, fazer edição precisa do genoma) apresenta importantes potenciais de aplicação, que vão desde pesquisa básica até tratamento clínico. Além de claros benefícios à área de saúde humana e animal, aplicações como esta podem trazer avanços em bioengenharia de plantas e microrganismos.

Vale ressaltar, porém, que apesar do claro avanço promovido, a ferramenta CRISPR apresenta algumas limitações, sobretudo o corte e a edição de locais inespecíficos do genoma (chamados de “off-targets”), de acordo com um artigo publicado na Nature Biotechnology. Esses “off-targets” podem atrapalhar a interpretação dos resultados experimentais e podem complicar os esforços para projetar terapias baseadas em CRISPR.

A Maior disputa de patentes da história acadêmica

Em vista de todo este potencial de aplicação, não causa espanto que o depósito de pedidos de patente para o CRISPR esteja envolto na disputa mais acalorada entre Institutos Científicos da história das invenções. Sim, o CRISPR é também assunto de uma amarga e acalorada disputa de patentes entre renomados Institutos de pesquisa dos Estados Unidos (Broad Institute, Harvard e Massachusets Institute of Technology versus University of California, Berkeley). A disputa deu início a um debate sobre quem realmente merece crédito e titularidade sobre esse avanço científico. A seguir alguns fatos:

(A) – O primeiro pedido de patente envolvendo a ferramenta CRISPR foi depositado em maio de 2012 pelas pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier pela University of California, Berkeley (documento número US20140068797). Ao elaborar o pedido de patente, a UC pediu que fosse incluída a cobertura de edição de genoma por CRISPR em qualquer situação, incluindo edição de células eucarióticas e outros tipos celulares. E isso foi feito. Porém, os dados usados para proteção da invenção pelas pesquisadoras e equipe e posteriormente publicados pelas próprias inventoras demostraram que a edição por CRISPR desenvolvida até então conseguia somente cortar o DNA em um tubo de ensaio, não havendo evidências de edição de DNA dentro de células de organismos vivos, muito menos do genoma de células eucariotas.

(B) Quem conseguiu demonstrar formas de editar células eucariotas foram os cientistas do Broad Institute (ligado ao Massachusetts Institute of Technology, MIT, e a Harvard), liderados por Feng Zhang, utilizando-se de células humanas e de camundongos (vide artigo), e pelo ex-supervisor de pós-doutoramento deste último, George Church, utilizando células humanas (vide artigo). Com isso, algumas patentes (ex. US8795965B2 US8697359B1) sob titularidade do Broad Institute foram concedidas nos idos de 2014.

(C) Debates entre especialistas de propriedade intelectual tentaram definir depois de anos de discussão se a invenção de Zhang deveria ser considerada óbvia ou não-obvia a um técnico no assunto, um pré-requisito fundamental à concessão de qualquer patente.

(D) Outro ponto de debate: Institutos de Pesquisa Científica precisariam licenciar o CRISPR para uso acadêmico? Seria justo privar à comunidade científica o uso de CRISPR até para aplicações mais básicas e simples? A resposta para isso dependeria da interpretação de que os fins da pesquisa acadêmica não são comerciais bem como o local da pesquisa (no Brasil, por exemplo não haveria qualquer problema à luz da nossa lei de propriedade industrial, vide art 43 -II da Lei 9279 de 1996). Porém, em alguns locais, nos EUA, por exemplo, a pesquisa acadêmica pode estar sujeita a alegações de violação de patente já que invenções podem surgir a partir do uso do CRISPR e desenvolvimento de produtos comerciais a partir disso, podem prosseguir sem controle. Há quem pense que o ideal seria que os Institutos acadêmicos tivessem feito um acordo de cross-licensing, evitando tanto desgaste em Tribunais.

(E) A decisão mais recente nesse caso ocorreu em 10 de setembro deste ano (2018) quando o Patent Trial and Appeal Board  manteve o entendimento do USPTO (o escritório americano de patentes) acerca da presença de atividade inventiva dos objetos reivindicados nos pedidos de patente do Broad Institute em comparação com toda a pesquisa dos cientistas da UC.  (decisão   decisão comentada)

Apesar da recente vitória do Broad Institute, é quase um consenso na área de propriedade industrial que o documento do Broad é uma patente dependente ao documento da Universidade da Califórnia. Como tal, um interessado em utilizar o CRISPR para modificação de genes de animais, seres-humanos ou plantas, teria de chegar a um acordo simultâneo com ambos os institutos (UC e Broad Inst). (fonte: taconic.com)

Para resolver essa celeuma, foi sugerido em 2017 pelos proprietários do Broad Institute, a criação de um fundo patentário (“patente pool”) que assegurasse aos interessados um único ponto de venda e licenciamento de suas patentes (fonte: bionews.org.uk). Ao que se sabe, até o momento esse fundo não conta com presença da Universidade da Califórnia.

Carla Piccinato

carla.p@mnip.com.br

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