Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual (uma Entrevista com Francis Gurry para a WIPO)
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Como você caracterizaria o impacto da Inteligência Artificial? (WIPO)
Inteligência artificial é uma fronteira digital que realizará um profundo impacto no mundo. Ela trará enormes consequências no viés tectonológico, econômico e social e transformará o modo que produzimos e distribuímos produtos e serviços, bem como a forma que vivemos e trabalhamos. (F.G.)
Que impacto as novas tecnologias relacionadas a inteligência artificial trarão para a área de inovação e criatividade? (WIPO)
Ainda é muito cedo para dizer, mas já está claro que a área de inteligência artificial realizará um impacto nos conceitos tradicionais de propriedade intelectual. Músicas e invenções criadas por inteligência artificial não estão muito distantes de se tornarem realidade e isso irá transformar os conceitos de “compositor”, “autor” e “inventor” — muito embora, não saibamos ainda como estes conceitos serão alterados.
Os objetivos fundamentais do sistema de propriedade intelectual sempre estiveram relacionados ao encorajamento do desenvolvimento de novas tecnologias e trabalhos criativos, bem como para criar uma base econômica sustentável para a realizações de invenções e criações artísticas. De uma perspectiva puramente econômica, se nós separamos outros objetivos do sistema de propriedade intelectual, tais como a “justa remuneração” e os direitos morais do autor, não há razão para cremos que não poderíamos utilizar a propriedade intelectual para recompensar as invenções e criações oriundas da inteligência artificial. Mas isso ainda requer uma boa dose de discussão sobre esse assunto. As respostas ainda não estão muito claras.
A ampla utilização de tecnologias da área de inteligência artificial ainda irá transformar conceitos bem estabelecidos da área de propriedade intelectual — patentes, desenhos industriais, trabalhos artísticos e literários e muitos outros. Isso já está acontecendo, mas é uma consequência da economia digital, não da Inteligência Artificial em isolado. Por exemplo, as ciências da vida (life sciences) criaram uma quantidade gigantesca de dados que têm valor significativo mas não constituem invenções no sentido clássico da acepção dessa palavra. Portanto, nós ainda precisamos desenvolver os direitos e as obrigações relacionados a estas formas de conhecimento.
Já existe uma forte pressão social sobre essa questão. Os movimentos de “abertura” da ciência, proteção de dados, e publicações, por exemplo, favorecem a percepção de que os dados não deveriam ser visualizados sob a forma de uma propriedade. Eles concordam que, os dados são uma base para a inteligência artificial, portanto deveriam estar disponíveis livremente para possibilitar o desenvolvimento da inteligência artificial e novas tecnologias.
Mas, de igual importância é o contexto atual da economia, nós estabelecemos direitos de propriedade para ativos intangíveis para prover incentivos para investimento na criação de novos conhecimentos e para garantir a justa competição.
Essas abordagens precisam ser reconciliadas. Ainda temos de criar limites entre a necessidade de criação de canais de livre fluxo de dados e a necessidade de canais fechados para criação de incentivos adequados à criação de novos conhecimentos.
Os dados e os algoritmos levantam uma série de questões fundamentais relativas à propriedade intelectual. Por exemplo, como você cria direitos de propriedade intelectual sobre um algorítimo que está em constante processo de mutação, por exemplo, quando a sua invenção não é mais a mesma daquela que você criou um ano antes, quando depositou seu pedido de patente? Este é um novo desafio que teremos de solucionar. (F.G.)
Isto significa que o sistema atual de propriedade intelectual está se tornando irrelevante? (WIPO)
As estatísticas nos dizem o contrário. A demanda por proteção por propriedade intelectual continua a ultrapassar o crescimento econômico ao redor do mundo. O sistema de propriedade intelectual como conhecemos, certamente não irá sair de moda. Ele está sendo utilizado mais do que nunca. Mas novos desafios estão emergindo e o resultado disso pode ser a criação de um segundo sistema de propriedade intelectual em paralelo ao existente atualmente, em vez de uma substituição ao sistema atual. (F.G.)
Tem sido notoriamente difícil para criadores capturarem o valor de seu trabalho na era digital. A nova era de digitalização irá agravar esse problema? (WIPO)
A inteligência artificial pode realmente tornar difícil aos criadores a captura dos frutos de seu trabalho. Mas se você tirar como exemplo as músicas criadas por inteligência artificial, em algum momento, a expressão digital da música gerada por um compositor — seja Mozart, Beethoven, ou um músico contemporâneo — servirá de input ao algoritmo de inteligência artificial. A pergunta é, até que ponto nós atribuímos valor à origem humana dos dados? Ainda não temos a resposta a essa pergunta.
Várias abordagens políticas estão emergindo para bancos de dados e inteligencia artificial, incluindo no que diz respeito à proteção e segurança de dados, o impacto que dados e inteligência artificial no mercado competitivo, segurança nacional, trabalho e propriedade privada. Nós estamos começado a desenhar as linhas de análise, mas isso tende a refletir o sistema de propriedade intelectual tradicional. Sem dúvidas, novas categorias de proteção à propriedade industrial devem surgir. (F.G.)
Por que a inteligência artificial se tornou uma prioridade para a organização mundial da propriedade intelectual e para a comunidade global relacionada a propriedade intelectual? (WIPO)
Há três fatores conduzindo o uso da inteligência artificial na administração dos sistemas de PI O primeiro se refere a volume. Em 2016, o último ano em que computamos essas informações, entre 3.1 milhões de pedidos de patente e 7 milhões de registro de marca e 963.000 pedidos de registros de desenho industrial (cobrindo 1.2 milhões de desenhos) foram realizados no mundo todo. Esse volume está superado rapidamente a capacidade de processamento dos recursos humanos. Por exemplo, na área de marcas e desenhos industriais, a análise realizada por um escritório de propriedade industrial, ou por um juiz, pela validade de uma marca ou desenho – o benchmark do que é considerado distintividade para uma marca ou originalidade para um desenho – é feita tendo como base as marcas previamente registradas e os desenhos já publicados. Simplesmente não é factível a um ser humano analisar as milhões de marcas e registros de desenho industrial recebidos ano após ano para determinar se uma marca ou desenho são distintivos ou originais.
Por isso a WIPO tem desenvolvido um mecanismo de busca por imagens para registro de marcas, dotado de tecnologia de inteligência artificial. Abrigada na WIPO Global Brand Database, a ferramenta é inédita a nível global. Ela entrega resultados em um segundo e é extremamente precisa.
Volume é um motivador principal para o uso de inteligência artificial em administrativo de propriedade intelectual. Qualidade e custo são também importantes motivadores. Em meio a uma demanda crescente de direitos de propriedade intelectual, ferramentas dotadas de inteligência artificial nos permitem alcançar uma qualidade superior com redução de custos administrativos. (F.G.)
Qual a sua percepção no uso de inteligência artificial nos processos administrativos de propriedade Industrial? (WIPO)
Os sistemas de inteligência artificial irão ter um papel cada vez mais importante no administrativo de propriedade industrial. Tendo em vista os grandes custos associados à coleta e organização de dados para alimentação de um sistema de inteligência artificial, nós precisamos encorajar o compartilhamento de recursos. Eu espero que com os sistemas de inteligência artificial do futuro, a comunidade internacional de propriedade industrial poderá trabalhar junta para alcançar níveis altos de interoperabilidade com uma boa relação custo-benefício.
A abordagem da WIPO (a Organização Mundial da Propriedade Intelectual) até agora, tem sido a exploração de meios de desenvolvimento de soluções em propriedade intelectual, utilizando treinamento de dados providos por estados membros e outros parceiros institucionais. Em troca, nós compartilhamos com estes parceiros todas as novas ferramentas desenvolvidas que fizeram uso dos referidos dados. Por exemplo, a WIPO tem desenvolvido um tradutor de primeira linha que faz uso de inteligência artificial, chamado de WIPO Translate. Nós estamos compartilhando essa ferramenta com 14 organizações intergovernamentais e muitos escritórios de patentes ao redor do mundo. Como o sistema depende do acesso e disponibilidade de dados, todos os parceiros podem se beneficiar do seu uso e podem fornecer dados para melhorar seu funcionamento. Assim, esperamos poder tornar essas ferramentas mais eficientes.
A WIPO tem sido claramente um líder no desenvolvimento de ferramentas dotadas de inteligência artificial para uso em propriedade industrial. A WIPO está explorando a inteligência artificial em outras áreas também? (WIPO)
A WIPO tem continuamente desenvolvido e refinado o WIPO Translate e o mecanismo de busca de imagens na área de marcas. Esses são os maiores desenvolvimentos na área de IA realizados pela WIPO. A classificação automática de patentes e marcas são outras áreas promissoras para aplicação da inteligência artificial. Em maio de 2018, em colaboração com um expert da Universidade de Geneva, a WIPO lançou um sistema de classificação automática de patentes para o International Patent Classification System utilizando uma tecnologia de rede neural. Essa nova ferramenta, denominada IPCCAT-neural, será retreinada anualmente, com informações novas da área de patentes e irá auxiliar examinadores de patentes no acesso e busca de “técnicas anteriores” mais facilmente. Isto, obviamente, é uma fonte importante para determinação da patenteabilidade de uma invenção.
A inteligência artificial promete facilitar a busca e exame de patentes. É possível prever seu uso, por exemplo, na realização de buscas de genes e comparação de sequências genéticas reivindicados em determinados pedido de patente.
Também estamos explorando o uso de inteligência artificial em particular, no desenvolvimento de serviços de resposta automática para o serviço de atendimento ao cliente da WIPO. Com o tempo, essas informações irão se tornar parte integral do nosso serviço de atendimento ao consumidor e irá permitir respondermos com mais qualidade ao crescente número de perguntas associado ao crescimento do sistema de propriedade intelectual. Haverão outras áreas em que a propriedade intelectual poderá fazer uso administrativo da propriedade intelectual de forma mais eficiente e robusta. (F.G.)
Existe algum papel para a tecnologia do Blockchain no administrativo de Propriedade Industrial? (WIPO)
Apesar da excitação exacerbada com a tecnologia de blockchain, não consigo ver essa tecnologia substituindo a função primordial da concessão do direito da propriedade industrial por um estado ou autoridade pública. A propriedade industrial é uma criação do estado, que diferentemente das propriedades materiais, não pode existir sem a criação de um direito por um estado. Eu não consigo ver um sistema privado como o Blockchain substituindo essa função que os escritórios de patentes têm de determinar quando conceder um título de propriedade industrial. Por outro lado, eu consigo ver o blockchain como uma tecnologia potencialmente superior no registro de transações (ex. licenciamento) relacionadas ao direito da propriedade industrial. (N.T. vide vídeo: blockchain e patentes)
Como você caracterizaria o implementação da inteligência artificial pela comunidade global de propriedade industrial? (WIPO)
Estamos nos anos iniciais dessa tecnologia. Existe, certamente, muito interesse nessa área entre os escritórios de propriedade industrial, que assimilam essa tecnologia como algo importante para lidar com volume, qualidade e custos. A tenologia de inteligencia artificial certamente estará sob os holofotes nos próximos meses e anos. (F.G.)
Cite algumas das barreiras existentes da difusão dos sistemas que utilizam inteligência artificial nos escritórios de propriedade industrial? (WIPO)
Criar plataformas de inteligência artificial é um grande desafio para todos os escritórios de propriedade industrial. Embora a tecnologia da inteligência artificial esteja disponível há algum tempo, apenas recentemente ela se tornou uma solução tecnológica óbvia. O número de profissionais com o treinamento e conhecimento adequado nessa tecnologia ainda é bastante limitado. Isso faz com que o desenvolvimento interno de plataformas de inteligência artificial seja difícil, particularmente frente à competição com empreendimentos privados, com maiores disponibilidade de recursos.
Escritórios propriedade industrial menores enfrentam alguns desafios mais específicos. Os sistemas de inteligência artificial dependem de dados (e algoritmos) e os escritórios menores naturalmente têm acesso a menos dados. Isso significa que o imperativo do volume, que está forçando o desenvolvimento e a implantação de aplicativos de inteligência artificial em escritórios maiores, é menos forte em escritórios menores, onde o volume de depósitos continua administrável. Dito isso, no mundo da propriedade industrial, temos uma política geralmente aceita de acesso livre a dados relacionados a registros de PI para patentes, marcas registradas e designs. Isso ajudará os escritórios propriedade industrial menores, que têm acesso livre a esses dados. A superação desses desafios exigirá maior ênfase na colaboração e coordenação dos parceiros. (F.G.)
Quais são alguns dos desafios específicos de políticas associados à implantação da Inteligencia artificial para o administrativo de propriedade industrial e como a WIPO está lidando com eles? (WIPO)
Este ano, a WIPO iniciou uma discussão internacional sobre questões de PI envolvendo, em particular, a aplicação de Inteligência artificial no administrativo de propriedade industrial. Em maio, organizamos uma reunião com escritórios de PI sobre esse assunto. Foi um começo bem-sucedido para essa importante discussão.
A questão mais ampla de como a IA irá mudar as categorias e conceitos da propriedade intelectual, entretanto, está ocorrendo em um momento em que o mundo está colocando menos energia na formulação de regras multilaterais do que em qualquer ponto nos últimos 70 anos. Esse é um problema sério que vai além do IP, mas que, especialmente, precisa ser resolvido nessa área, porque a propriedade intelectual é essencialmente um fenômeno global; a tecnologia é global, assim como os dados de patentes associados a ela. As patentes raramente se relacionam com uma única jurisdição. É por isso que precisamos de soluções globais que garantam pelo menos interoperabilidade funcional. (F.G.)
Existe um papel para o multilateralismo em um mundo impulsionado pela Inteligência Artificial? (WIPO)
Sim e por vários motivos. Primeiro, alcançar a interoperabilidade funcional dos sistemas de propriedade intelectual em todo o mundo exigirá cooperação multilateral. Em segundo lugar, uma das funções do sistema de propriedade intelectual é garantir a concorrência justa. A criação de regras multilaterais é uma maneira positiva e construtiva de alcançar isso. E, como a propriedade intelectual será um dos principais campos de batalha para a competição no futuro, uma cooperação multilateral forte é essencial. A terceira razão é que a tecnologia está em constante evolução e a grande velocidade. Neste contexto, o multilateralismo é um mecanismo extremamente importante para apoiar a capacitação e a partilha para garantir que as lacunas tecnológicas existentes não sejam exacerbadas. Esse é um desafio real. (F.G.)
Quais são os próximos passos da WIPO nessa área? (WIPO)
Continuaremos a promover a cooperação no desenvolvimento e implantação de ferramentas de inteligencia artificial para administração de PI. E continuaremos a encontrar maneiras de iniciar discussões internacionais sobre a evolução das leis e políticas de PI em um mundo cada vez mais influenciado pela Inteligencia artificial. (F.G.)
Francis Gurry
Traduzido por oconsultorempatentes.com
Artigo original em link
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