Cadastro no SISGEN – Como saber se seu projeto precisa ou não ser cadastrado

A importância da biodiversidade para a Ciência


O estudo de seres vivos constitui um dos maiores interesses da Ciência Moderna. Com o passar do tempo, mais e mais campos de pesquisa tem surgido a fim de explorar cada nova faceta do funcionamento enigmático das dinâmicas e moléculas que possibilitam a vida. Medicina, Farmacologia, Biologia, Microbiologia, Biologia Molecular, Engenharia Genética, Biologia Sintética e Astrobiologia. Do estudo de sistemas complexos de extensão planetária até a investigação de nível molecular, a Ciência Moderna prossegue com seus esforços de pesquisa. 

A atividade científica permite a maior compreensão da natureza à luz do chamado método científico, o que permite uma maior abstração do funcionamento dos serem vivos, gerando insights para o desenvolvimento de novos produtos. A lista de produtos que se beneficiam da biodiversidade é longa, incluindo múltiplos fármacos, materiais, alimentos entre outros. Uma vez constatado o valor das informações extraíveis da biodiversidade, muitos países começaram a criar leis que de alguma maneira protegessem sua biodiversidade de explorações indevidas, principalmente aquelas conduzidas por outras nações. A biodiversidade passa então a ser entendida como um tesouro nacional que deve ser protegido e preservado.

Acordos internacionais – Convenção da Diversidade Biológica e Protocolo de Nagoya

Um dos grandes marcos do debate sobre a importância da biodiversidade foi a chamada Convenção da Diversidade Biológica (CDB) de 1992. O evento realizado na cidade do Rio de Janeiro contou com a participação de grandes potências mundiais, sendo um divisor de águas no reconhecimento do valor ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural da biodiversidade. Na ocasião foram também cunhados os termos “patrimônio genético” (PG) e “conhecimento tradicional associado” (CTA), sendo ambos fundamentais para as posteriores escritas da Lei de Propriedade Industrial brasileira (Lei N°9.9279 de 1996).

Mais adiante, em 2010, foi realizado um novo evento com objetivo de discutir e firmar um acordo internacional sobre o uso ético do PG e CTA. O evento ficou conhecido como Protocolo de Nagoya sobre Acesso e Repartição de Benefícios, ou simplesmente Protocolo de Nagoya. Como o próprio nome já indica, o evento tratou com maior especificidade sobre as políticas de acesso ao PG e CTA e da repartição de benefícios obtidos a partir desse acesso. O acordo firmado pelos países signatários, dentre os quais se inclui o Brasil, serviu de base para a elaboração de leis nacionais quanto ao acesso e repartição de benefícios, como por exemplo a Lei da Biodiversidade brasileira (Lei N°13.123 de 2015).

Legislação brasileira – a criação do CGEN e SISGEN

A primeira medida legal de âmbito federal tomada pelo Brasil no sentido de criar diretrizes e condições para o acesso do PG brasileiro e CTA foi a Medida Provisória N°2.186 de 2001 . Tal medida foi então revogada pela promulgação da Lei N° 13.123 de 2015, a popularmente conhecida como Lei da Biodiversidade ou Marco Legal da Biodiversidade. Está lei estabelece as diretrizes do acesso ao PG e CTA nacional, definindo os tipos de atividades e situações nas quais será exigido o cadastro do acesso. Adicionalmente, a Lei da Biodiversidade cria o Conselho Nacional de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) , órgão responsável por coordenar a elaboração e a implementação de políticas para a gestão do acesso ao PG e ao CTA e da repartição de benefícios. 

No ano seguinte a promulgação da Lei da Biodiversidade, 2016, é criado o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado (SISGEN)  através do Decreto N°8.772. O SISGEN é uma plataforma digital cujo objetivo é facilitar o cadastro dos acessos ao PG e CTA, assim conferindo maior rastreabilidade aos projetos realizados e em andamento por parte do CGEN. De modo geral, podemos dizer que o SISGEN é o sistema pelo qual o CGEN coleta informações sobre o acesso ao PG e CTA de modo a mapeá-los quanto suas finalidades, assim sistematizando a aplicação das devidas políticas de repartição de benefícios previstas em Lei. 

Neste artigo não pretendo me ater ao funcionamento do processo de cadastro no SISGEN, suas exigências legais durante o cadastro ou formas de repartição de benefícios. Tais temas serão tratados em artigo futuro. A seguir tratarei dos critérios que definem se seu projeto deve ou não ser cadastrado, quando o cadastro deve ser feito. Com isso pretendo facilitar a identificação dos projetos que demandam cadastro e evitar esforços de cadastro desnecessários por parte de pesquisadores.

O que caracteriza um acesso ao PG ou CTA?

Antes de prosseguir com o cadastro do seu projeto no SISGEN é preciso avaliar se este de fato envolve acesso ao PG ou CTA. Para responder tal questionamento, no entanto, é preciso atentar as definições de PG e CTA de acordo com a Lei da:

“I – patrimônio genético: informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos;

II – conhecimento tradicional: informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético” (Artigo 2° Lei 13.123)

De acordo com as definições acima, se caracteriza como acesso ao PG, atividades que acessem informações de origem genética de organismos ou moléculas oriundo do metabolismo destes. Incluem-se aqui tanto informações genéticas extraídas a partir de material biológico como aquelas obtidas de bancos de dados digitais (in silico). No entanto, vale ressaltar, que a mera obtenção ou consulta de tais informações de origem genética não é o suficiente para caracterizar o acesso propriamente. Segundo a mesma lei, o acesso ao patrimônio genético é definido como:

“VIII – acesso ao patrimônio genético – pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado sobre a amostra de patrimônio genético.” (Artigo 2°, Lei 13.123)

Sendo que por “pesquisa” e “desenvolvimento tecnológico” se entende:

“X – pesquisa – atividade, experimental ou teórica, realizada sobre o patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, com o objetivo de produzir novos conhecimentos, por meio de um processo sistemático de construção do conhecimento que gera e testa hipóteses e teorias, descreve e interpreta os fundamentos de fenômenos e fatos observáveis;

XI – desenvolvimento tecnológico – trabalho sistemático sobre o patrimônio genético ou sobre o conhecimento tradicional associado, baseado nos procedimentos existentes, obtidos pela pesquisa ou pela experiência prática, realizado com o objetivo de desenvolver novos materiais, produtos ou dispositivos, aperfeiçoar ou desenvolver novos processos para exploração econômica;”

Segundo a definição as definições fornecidas pelas Lei, podemos dizer que se caracteriza como acesso ao PG, qualquer atividade realizada sobre informação genética ou molécula do metabolismo oriundas de seres vivos, sendo que tal atividade visa a construção de conhecimento teórico ou experimental, ou o desenvolvimento de um produto, material ou dispositivo. 

Partindo de tal entendimento, podemos pensar em exemplos que ficariam de fora do que se caracteriza como acesso ao PG. Por exemplo, no caso de ensaios de toxicidade de fármacos em animais, apesar de existir o envolvimento de animais no procedimento experimental, a informação genética desses ou moléculas oriundas de seu metabolismo não são alvo de construção de nenhum conhecimento ou desenvolvimento de produto. O que se tem é o animal atuando como um meio de experimentação para aferir propriedades do fármaco em desenvolvimento. Ou exemplo são os estudos ecológicos com o objetivo de descrição de bioma e seus sistemas. Neste caso, apesar dos animais serem objetos de estudo sobre o qual se construirá conhecimento, como por exemplo a descrição das relações ecológicas (comensalismo, predação, cooperação, etc.), as informações genéticas e moléculas do metabolismo oriunda dos seres vivos estudados não consideradas nas atividades de pesquisa. Dessa forma, estudos desse tipo também não caracterizam acesso ao PG. Alguns exemplos de atividades que não se enquadram como acesso ao PG são ainda fornecidas pelo Artigo 107° do O Decreto 8.772 de 2016:

“Art. 107. Os seguintes testes, exames e atividades, quando não forem parte integrante de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico, não configuram acesso ao patrimônio genético nos termos da Lei nº 13.123, de 2015 :

I – teste de filiação ou paternidade, técnica de sexagem e análise de cariótipo ou de ADN e outras analises moleculares que visem a identificação de uma espécie ou espécime;

II – testes e exames clínicos de diagnóstico para a identificação direta ou indireta de agentes etiológicos ou patologias hereditárias em um indivíduo;

III – extração, por método de moagem, prensagem ou sangria que resulte em óleos fixos;

IV – purificação de óleos fixos que resulte em produto cujas características sejam idênticas às da matéria prima original;

V – teste que visa aferir taxas de mortalidade, crescimento ou multiplicação de parasitas, agentes patogênicos, pragas e vetores de doenças;

VI – comparação e extração de informações de origem genética disponíveis em bancos de dados nacionais e internacionais

VI – processamento de extratos, separação física, pasteurização, fermentação, avaliação de pH, acidez total, sólidos solúveis, contagem de bactérias e leveduras, bolores, coliformes fecais e totais das amostras de patrimônio genético; e

VII – caracterização físico, química e físico-química para a determinação da informação nutricional de alimentos;

Parágrafo único. Não configura acesso ao patrimônio genético a leitura ou a consulta de informações de origem genética disponíveis em bancos de dados nacionais e internacionais, ainda que sejam parte integrante de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.”

No caso de acesso ao CTA, a definição fornecida pela Lei inclui atividades que acessem informações ou práticas das populações citadas sobre propriedades ou usos do PG, o que inclui modos de preparo de plantas e suas propriedades, uso de extratos de origem animal ou vegetal, entre várias outras aplicações. Diferentemente do acesso ao PG, o acesso ao CTA exige maiores precauções por parte do pesquisador que conduz a atividade, isso pois o acesso deve se dar mediante consentimento prévio informado.

“O acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável está condicionado à obtenção do consentimento prévio informado.

§ 1º A comprovação do consentimento prévio informado poderá ocorrer, a critério da população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor tradicional, pelos seguintes instrumentos, na forma do regulamento:

I – assinatura de termo de consentimento prévio;

II – registro audiovisual do consentimento;

III – parecer do órgão oficial competente; ou

IV – adesão na forma prevista em protocolo comunitário.

§ 2º O acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consentimento prévio informado.” (Art. 9º Lei 13.123)

Repare que tal consentimento é exigido no caso de a origem do conhecimento ser identificável e pode se dar de diferentes formas. Por outro lado, em casos onde não se é possível traçar origem do conhecimento a alguma população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional, o conhecimento é tido como de origem não identificável, não requerendo consentimento prévio.

A definição de acesso ao CTA também é definido de maneira distinta no acesso ao PG:

IX – acesso ao conhecimento tradicional associado – pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado sobre conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético que possibilite ou facilite o acesso ao patrimônio genético, ainda que obtido de fontes secundárias tais como feiras, publicações, inventários, filmes, artigos científicos, cadastros e outras formas de sistematização e registro de conhecimentos tradicionais associados;

De acordo com a definição, o acesso ao CTA também requer que este seja alvo de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico. Contudo, é apresentado uma vinculação direta com o PG, sendo definido que o a pesquisa ou desenvolvimento tecnológico do CTA deve facilitar o acesso ao PG (que como implica na pesquisa ou desenvolvimento tecnológico sobre o PG). Ademais, a obtenção do CTA pode ser feita através de qualquer forma de sistematização deste, ou seja, por meio de qualquer fonte que organize práticas, conhecimentos, dados e conceitos de uma dada população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional.

Existe ainda um outro fator para verificar se uma atividade se caracteriza como acesso de PG ou CTA procede, que é a necessidade do ser vivo relacionado ao PG ou CTA fazer parte da biodiversidade brasileira. Para que um organismo seja entendido como integrante da biodiversidade brasileira deve existir em condições in situ no território nacional.

“XXV – condições in situ – condições em que o patrimônio genético existe em ecossistemas e habitats naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde naturalmente tenham desenvolvido suas características distintivas próprias, incluindo as que formem populações espontâneas.” (Art 2°- Lei 13.123)

Sendo que os termos “espécie domesticada ou cultivada” e ” população espontânea” significam:

“XXVI – espécie domesticada ou cultivada – espécie em cujo processo de evolução influiu o ser humano para atender suas necessidades;

XXVIII – população espontânea – população de espécies introduzidas no território nacional, ainda que domesticadas, capazes de se autoperpetuarem naturalmente nos ecossistemas e habitats brasileiros” (Art 2° Lei 13.123)

Segundo as definições entende-se que, um organismo constituinte da biodiversidade brasileira é aquele que capaz de se reproduzir em ecossistemas naturais do território nacional, independentemente da sua origem. Mesmo com esta definição, existem casos nos quais se é difícil determinar se dado organismo cumpre tais requisitos. Alternativamente, se pode então verificar se o organismo pertence a biodiversidade através da consulta direta em catálogos oficiais, tal como o Catálogo da Fauna Brasileira e o Reflora – Algas, Fungos e Plantas

Adicionalmente, a Lei também inclui na biodiversidade brasileira os microrganismos que tenham sido isolados no território brasileiro, conforme disposto no mesmo Art 2°:

“Parágrafo único. Considera-se parte do patrimônio genético existente no território nacional, para os efeitos desta Lei, o microrganismo que tenha sido isolado a partir de substratos do território nacional, do mar territorial, da zona econômica exclusiva ou da plataforma continental.” (Art 2° Lei 13.123)

É importante ressaltar que a Lei da Biodiversidade exclui de seus critérios de PG e CTA os seres humanos. De modo que, o disposto na Lei não se aplica as atividades relativas as informações genéticas humana, moléculas do metabolismo humano ou conhecimento associadas.

Fora os cadastros de acesso ao PG e CTA, o SISGEN também exige cadastro em outros dois casos, a manutenção de coleções ex situ contendo PG ou CTA e o envio de remessas de material contendo PG ou CTA para o exterior. Por coleções ex situ se entende qualquer forma de manutenção de PG fora do seu habitat natural, o que inclui bancos de organismos vivos, bancos de germoplasma, bancos digitais de informação genética, entre outros.

Projetos a partir de que data devem ser cadastrados?

Outro ponto relevante antes de proceder com o cadastro diz respeito a data de realização do projeto. Devem ser cadastrados no SISGEN apenas atividade realizadas após dia 30/06/2000, não sendo obrigatório o cadastro apenas das atividades finalizadas até essa data. Apesar de não obrigatório o SISGEN incentiva o cadastro de atividades anteriores a 30/06/2020.

No caso de projetos que já contavam com autorização ou pedido de autorização em tramitação junto ao IBAMA, MAPA, CNPQ ou qualquer outro órgão em conformidade com a Medida Provisória Nº 2.186-16 de 2000, o recadastramento junto ao SISGEN também deverá ser realizado. Vale ressaltar que o SISGEN solicitará o número dos processos referente as autorizações passadas, portanto é de vital importância guardas tais documentações de forma apropriada.

Quando devo fazer o cadastro do meu projeto? Antes, durante ou depois da execução?

De acordo com a Lei da biodiversidade:

“o cadastramento deverá ser realizado previamente à remessa, ou ao requerimento de qualquer direito de propriedade intelectual, ou à comercialização do produto intermediário, ou à divulgação dos resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou de comunicação, ou à notificação de produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido em decorrência do acesso” (Art 12° Lei 12.123)

sendo que os termos “produto intermediário” aqui se refere a produtos intermediários na cadeia de produção de um dado produto.

De acordo com a definição, e segundo o próprio Ministério do Meio Ambiente, o cadastro é somente necessário previamente às atividades listadas. Observe que as atividades listadas dizem respeito principalmente a atividades de publicação de resultados, compartilhamento de material, comercialização de produto, mas não atividades de pesquisa em si. Tal constatação decorre do fato do CGEN estar mais preocupado com atividades de divulgação de informação e exploração econômica. Dessa forma, as atividades de pesquisa relacionadas ao acesso de PG ou CTA podem ser iniciadas mesmo sem o cadastro no SISGEN, o que não quer dizer que o projeto possa ser realizado sem cadastro algum.

Considerações finais

Apesar de terem se passado aproximadamente 5 anos desde a implementação do SISGEN, muitos pesquisadores e empresas ainda possuem dúvidas quanto a necessidade de cadastro do seu projeto. Neste artigo tentei explorar um pouco os critérios que definem se um projeto deve ou não ser cadastrado no SISGEN e quando o cadastro deve ser feito. No entanto, a decisão sobre o cadastro deve sempre ser avaliada caso a caso pelos próprios pesquisadores que conduzem o projeto.

Por fim, nós do escritório MNIP nos colocamos a disposição em caso de dúvidas quanto cadastro no SISGEN e demais dúvidas envolvendo processos de repartição de benefícios e outros temas.

Danilo Zampronio

danilo.z@mnip.com.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *