De acordo com a definição de Denis Borges Barbosa, “uma patente, na sua formulação clássica, é um direito, conferido pelo Estado, que dá ao seu titular a exclusividade da exploração de uma tecnologia. Como contrapartida pelo acesso do público ao conhecimento dos pontos essenciais do invento, a lei dá ao titular da patente um direito limitado no tempo, no pressuposto de que é socialmente mais produtiva em tais condições a troca de exclusividade de fato (a do segredo da tecnologia) pela exclusividade temporária de direito”.
Quando a patente de uma invenção expira, ela passa para o domínio público e permite sua exploração em âmbito global. Contudo, produtos como medicamentos precisam de aprovação e registro junto ao órgão de vigilância sanitária para serem comercializados, um processo que é frequentemente complexo e exige a apresentação de numerosos documentos para comprovar que o medicamento é eficiente e seguro.
Devido à complexidade burocrática do processo, o registro e a comercialização de um novo medicamento genérico B, equivalente ao medicamento referência A com patente recentemente expirada, pode demorar tempo suficiente para que o medicamento A permaneça como o único disponível no mercado, mesmo após o término da proteção patentária. Isso, na prática, estenderia virtualmente a proteção do medicamento expirado, prejudicando a concorrência no mercado farmacêutico e os consumidores finais. Nesse contexto, surge o dispositivo conhecido como exceção “bolar”.
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Em 1986, os EUA defenderam a inclusão de propriedade intelectual, serviços e investimentos na Rodada Uruguai, que concluiu em 1994. Esta rodada resultou na criação da OMC e na assinatura de diversos acordos, incluindo o TRIPs, que estabelece regras sobre os direitos de propriedade intelectual para os países membros da OMC, sem considerar a liberdade de cada país membro para adotar uma legislação que promova seu desenvolvimento tecnológico.
No Brasil, a regulamentação dos direitos de propriedade industrial está em conformidade com o TRIPs. Entre os dispositivos presentes neste acordo, destaca-se uma orientação que permite aos países-membros incorporar mecanismos além do direito de patente, permitindo, em certas circunstâncias, o uso de tecnologias patenteadas sem autorização prévia.
Nessa linha de pensamento, o artigo 30 do Acordo TRIPs, refletido na legislação de patentes brasileira pelo artigo 43 da LPI e seus incisos, define os limites dos direitos de exclusividade e permite a implementação do “uso experimental” e da “exceção bolar”. Cita-se o Art. 43 (VII) da LPI:
“Art. 43. O disposto no artigo anterior não se aplica:
(…)
VII – aos atos praticados por terceiros não autorizados, relacionados à invenção protegida por patente, destinados exclusivamente à produção de informações, dados e resultados de testes, visando à obtenção do registro de comercialização, no Brasil ou em outro país, para a exploração e comercialização do produto objeto da patente, após a expiração dos prazos estipulados no art. 40.” (Grifos nossos)
A ORIGEM DA EXCEÇÃO BOLAR
O embrião da exceção “bolar” originou-se de um caso judicial de disputa de patente ocorrido nos Estados Unidos durante a década de 1980 entre duas indústrias farmacêuticas: Roche Products Inc. e Bolar Pharmaceutical Co. Inc. A Bolar Pharmaceutical Co. Inc buscava aprovação para um genérico terapeuticamente equivalente ao medicamento Dalmane®, cuja patente do princípio ativo era detida pela Roche. No que tange aos medicamentos genéricos, a empresa interessada em comercializá-lo deve comprovar a equivalência farmacêutica do produto através de testes regulatórios, como estabilidade, dissolução e bioequivalência.
A Bolar Pharmaceutical aproveitou testes clínicos realizados pela Roche para acelerar a aprovação de seu produto e sua entrada no mercado após a expiração da patente do flurazepam, ingrediente ativo do Dalmane®, importando esta substância para realizar os testes mencionados e submeter o pedido de registro junto ao FDA.
A Roche contestou essa utilização, alegando violação de seus direitos de propriedade sobre a patente. Embora a Corte Americana tenha reconhecido a finalidade dos testes sanitários, o veredicto foi favorável à Roche, pois a exceção “bolar” não estava prevista na legislação dos EUA na época.
Após este evento, na legislação americana, surgiu o que ficou conhecido como exceção “bolar”, dispositivo que permite as indústrias farmacêuticas buscarem o registro sanitário de genéricos antes da expiração da patente do medicamento de referência. Sem essa exceção, a introdução de genéricos sofreria atraso pela necessidade de realizar e apresentar os testes requeridos para registrar o medicamento, permitindo que o titular da patente pudesse continuar como o único agente comercial detentor do fármaco no mercado, mesmo após sua vigência.
A EXCEÇÃO BOLAR NO BRASIL
No Brasil, essa regra de “uso experimental” foi acrescida ao rol do artigo 43 pela Lei nº 10.196/2001, através do inciso VII, que dispõe que os direitos assegurados aos titulares de patente de impedir a exploração não autorizada de seus inventos não se aplicam “aos atos praticados por terceiros não autorizados, relacionados à invenção protegida por patente, destinados exclusivamente à produção de informações, dados e resultados de testes, visando à obtenção do registro de comercialização, no Brasil ou em outro país, para a exploração e comercialização do produto objeto da patente, após a expiração dos prazos estipulados no art. 40.”
Dessa maneira, a utilização por terceiros não autorizados deve ter como objetivo a geração de dados indispensáveis para o registro comercial, sendo sua exploração permitida somente após o vencimento da patente do produto. Portanto, qualquer utilização que não esteja alinhada a esse propósito regulatório específico não é respaldada pela exceção “bolar” e constitui uma violação dos direitos exclusivos do titular.
LEI DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA E EXCEÇÃO BOLAR
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 317/2019, publicada em 23/10/2022, estabeleceu o prazo de 10 anos para a validade do registro de medicamentos, bem como a lista de documentos necessários à manutenção da regularização desses produtos.
Em 2017, houve o acréscimo do parágrafo 8 (II) ao Artigo 12 da Lei de Vigilância Sanitária, impondo que a revalidação de registro de um medicamento somente seja concedida se este for comercializado por um período mínimo de 2/3 dos 10 anos de seu registro, ou seja, a partir do 40º mês. Cita-se o referido excerto:
“Art. 12 – Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.
§ 8° – Não será revalidado o registro:
I – do produto não classificado como medicamento que não tenha sido industrializado no período de validade do registro expirado;
II – do medicamento que não tenha sido comercializado durante pelo menos o tempo correspondente aos dois terços finais do período de validade do registro expirado.” (Grifos nossos)
No entanto, no caso da concessão do registro para um equivalente farmacêutico de um produto ainda protegido por patente, como atender à exigência temporal da vigilância sanitária sem ferir os direitos exclusivos do titular da patente?
Ainda, se o produto for protegido por patente e a obtenção do registro se der por um terceiro não autorizado, como respeitar a condição imposta sem infringir a proteção patentária?
Por exemplo: o agente interessado obteve o registro sanitário para comercializar o fármaco genérico a partir do 1º dia de março de 2018. Ocorre que o princípio ativo do produto é protegido pela patente X e ainda irá viger por 4 anos. Para que o agente econômico possa revalidar o seu registro, ele deverá comercializar o medicamento a partir do 40º mês após a obtenção, ou seja, a partir da metade de 2021, infringindo a patente X durante alguns meses.
Atualmente, não há um dispositivo regulador que possa esclarecer tal situação, o que faz com que os interessados em utilizar a exceção bolar sofram altos riscos de infração patentária.
CONCLUSÃO
A exceção bolar permite que os agentes interessados em comercializar um medicamento genérico realizem testes experimentais sobre um produto patenteado durante a vigência da patente, promovendo a fluidez da competição nesta seara e permitindo que novas alternativas de produtos cuja patente foi recém extinta entrem no mercado. Futuramente, uma cooperação entre o INPI e a ANVISA visando o desenvolvimento de um mecanismo sinérgico pode ser um caminho que promova a resolução deste conflito.