No final de janeiro de 2019 o Brasil viu a história de um dentista de Cachoeira Paulista, que fabricou sua própria Ferrari F40. Um veículo como este, custa hoje cerca de 4 milhões de reais segundo a revista 4Rodas. Como não dispunha de recursos para comprar uma F40, o dentista Vitor Stevan (31 anos) do interior de São Paulo resolveu fabricá-la com suas próprias mãos.
Primeiramente, Vitor criou uma impressora 3D gigante em sua casa; em seguida desenhou os contornos do veículo em um software de CAD; a próxima etapa foi imprimir peça por peça o seu automóvel e montar todas as peças após a impressão final. Quando o veículo já estava praticamente pronto e acabado, ao encontrar algumas dificuldades financeiras, o criador da réplica resolveu colocar à venda o seu veículo em uma plataforma de vendas online por R$: 80.000,00.
Ao tomar conhecimento desse anúncio, a empresa detentora do registro da marca Ferrari entrou com um pedido para instauração de um inquérito policial contra o senhor Vitor Stevan.
Mas o que diz a lei nesse caso? Posso fabricar minha própria réplica de Ferrari em casa?
Posso fabricar uma réplica de Ferrari e vendê-la logo em seguida?
Com relação às patentes que reivindicam o automóvel, mesmo no ano de 1987 – data da primeira venda desse modelo – Vitor estaria livre para reproduzir em casa qualquer tecnologia dos motores, suspensões, transmissão e ligas metálicas do possante, deste que, em nenhum momento vendesse o objeto, alugasse o mesmo, ou tivesse qualquer outra finalidade lucrativa com o veículo ou com suas peças. Isso é o que diz o artigo 43 – I da lei 9279 de 1996 (a LPI).
Como a Ferrari F40 é da década de 80, assumimos aqui que todas as suas patentes perderam validade, dado o fato de que a vigência máxima das patentes de invenção no Brasil é de 20 anos. Assim, mesmo que copiasse e vendesse as referidas tecnologias hoje, o suposto infrator não estaria cometendo qualquer ato ilícito.
Quanto ao desenho industrial do objeto, idem, o parágrafo único do artigo 109 da lei 9279 de 1996 remete ao mesmo artigo 43 -I da LPI, permitido o uso privado do desenho industrial. De todo modo, como os desenhos industriais que poderiam proteger esse objeto já expiraram – visto que já se passaram mais de 25 anos desde a primeira divulgação da F40 – em tese, todos os DIs da F40 estão em domínio público e poderiam ser reproduzidos ou comercializados por qualquer um que tivesse interesse.
Resta a proteção conferida pelas marcas, que, por definição, é ilimitada no quesito tempo.
Como Vitor estampou a marca nominativa e o logotipo da Ferrari na lataria do veículo, seguindo o modelo original fabricado pela marca italiana e como o dentista anunciou a venda desse produto utilizando o nome Ferrari, seu problema é muito maior.
Ao anunciar sua réplica no mercado, com a descrição dos produtos e o valor de venda, ficou caracterizado o uso comercial de marca de terceiro. Os artigos de lei que pautam a contrafação de marcas (189 e 190 da LPI) são taxativos ao determinar que qualquer reprodução de marca de terceiros não autorizada configura ilícito civil e penal, com exceção dos exemplos definidos no artigo 132 da LPI, que não engloba a tentativa de venda por Vitor Stevan.
Por ter objetivado a venda do veículo, a defesa de Vitor torna-se bastante difícil. Se não tivesse colocado à venda a réplica da Ferrari, talvez fosse possível alegar, por um critério de equidade ou por analogia ao artigo 43 – I da LPI que o uso privado da marca seria possível, desde que não houvesse prejuízo na reputação da marca ou prejuízo econômico em seu uso. Ainda assim, não seria uma defesa fácil, tendo em vista a redação dos artigos 189 e 190 da LPI e a interpretação doutrinária sobre os mesmos.
Como lição a este caso, fica uma lista de recomendações àqueles que pretendem fabricar réplicas de automóveis no Brasil:
(i) jamais imprima o logotipo ou marca nominativa em qualquer peça do veículo;
(ii) não utilize o veículo para fins comerciais (venda, aluguel, utilização para transporte de carga ou passageiros, etc) por, pelo menos, 25 anos contados da data inicial de comercialização do veículo no mundo;
(iii) ainda que intencione vender após os referidos 25 anos, não induza o comprador a crer que ele está comprando do fabricante original, isto seria considerado crime de concorrência desleal, independente do ano em que a venda for realizada;
(iv) jamais reproduza o veículo se a sua configuração externa estiver registrada como marca tridimensional no INPI. Nesse caso, assim como o registro da marca comum, o registro de marca tridimensional não tem limite de vigência, e protege toda a configuração externa do veículo.
Não obstante, esteja ciente de que, mesmo que tome todas essas medidas, existe um risco ao replicador de automóveis. Se o design do veículo for considerado “notoriamente conhecido” no Brasil, ainda que o fabricante não tenha registrado esse design como marca tridimensional no INPI, ele poderá fazê-lo a qualquer momento, independente de qualquer ato de terceiro, com base no artigo 6°Bis da Convenção da União de Paris (CUP), da qual o Brasil é membro signatário. Este seria o caso da Ferrari Testarossa, registrada na União Europeia como marca tridimensional sob o número 006542931. Se o titular tivesse interesse e o INPI entendesse que se trata de um desenho notoriamente conhecido no Brasil, essa marca tridimensional poderia ser registrada no INPI com base na referida disposição da CUP. Isso, sem dúvidas, complicaria a situação de qualquer replicador desse automóvel.
Portanto, conclui-se aqui, que: mesmo tomando todas as medidas preventivas, mesmo sendo o mais cauteloso possível e seguindo toda a lista de recomendações desse artigo, aquele que realiza réplicas de automóveis estará sempre sujeito a complicações na esfera cível e penal.
Ari Magalhães