Artigo publicado em 2014 na revista da ASPI boletim #42
Recentemente, o governo federal anunciou a assinatura de um contrato de compra e venda com a sueca SAAB para a aquisição de 36 aviões caças, modelo Gripen NG. O referido contrato prevê um acordo de transferência de tecnologia que possibilitará a fabricação de 80% dos componentes das aludidas aeronaves em território nacional.
Alega-se que tal acordo de transferência de tecnologia tenha exercido peso crucial na decisão do governo de escolher a empresa sueca em detrimento da americana Boeing e da francesa Dassault na escolha dos aviões, pois a fabricante americana e a fabricante francesa não previam em suas propostas comerciais a transferência de tecnologia atrelada à venda dos aviões. Se tudo correr dentro do planejado, os aviões serão produzidos na região do ABC Paulista e a primeira leva das aeronaves será entregue em meados de 2018.
De acordo com notícia publicada no jornal Estado de S. Paulo, contudo, alguns componentes dos caças estariam protegidos por patentes americanas. Nesse caso, a fabricação dessas aeronaves em território nacional esbarraria na proteção conferida por essas patentes, gerando grave conflito com as empresas titulares desses direitos e, ainda, muito desconforto com o governo dos EUA.
Ainda segundo o Estado de S. Paulo, o componente do caça mais protegido pelas patentes americanas é a turbina GE F414G, fabricada pela americana General Electric – ironicamente, o mesmo propulsor utilizado pelo caça Super Hornet, o concorrente do Gripen NG fabricado pela Boeing, que perdeu a disputa na oferta de compra brasileira. Essa turbina da General Electric seria o calcanhar de Aquiles do contrato fechado com a sueca Saab. Isso porque, segundo informações Ob Cit, as patentes que protegem esse motor supostamente seriam um entrave à fabricação dos Gripen NG em território nacional.
Realizamos uma breve investigação para auferir os riscos aos quais o governo Brasileiro estaria exposto ao produzir internamente o caça Gripen NG à luz das patentes da General Electric para a referida turbina.
Para tanto, conduzimos uma busca de documentos de patente de titularidade da General Electric que mencionassem em seu descritivo a turbina “GE F414G”. Nessa busca – chamada ‘busca de infração’ – foram encontrados nada menos de 130 documentos relativos a patentes depositadas nos Estados Unidos, Canadá, Japão, China e Europa com características similares às compreendidas pela referida turbina. De acordo com nossa pesquisa, nenhum dos documentos encontrados possui correspondente brasileiro e a grande maioria desses documentos já excedeu o prazo para a entrada na fase nacional brasileira. Consequência disso é que, apesar de haver muitas patentes no exterior, a princípio referida tecnologia pode estar em domínio público no Brasil. Por outro lado, a simples fabricação peças para tais aeronaves, pelo Brasil, nos países onde tais patentes foram depositadas/concedidas, pode expor o país a risco de violação patentária. Aprofundamos, a seguir, essa análise.
Um dos documentos encontrados nessa busca foi a patente US7596950, que reivindica um tubo protetor para um injetor de combustível atrelado a um mecanismo de pós-combustão (afterburner) do motor. Esse documento possui apenas correspondentes na Europa (EP1764555) e no Canadá (CA2551711).
O mecanismo pós-combustão, vale frisar, é um dos sistemas que diferenciam a turbina de um caça de uma turbina de um avião comercial, atribuindo maior potência a esses motores em relação a seus pares empregados pela aviação civil.
Outro documento, o pedido de patente US20070117480, reivindica um material específico para aplicação em bocais de saída de diâmetros variáveis para turbinas a jato (componente também de aplicação exclusiva em propulsores de uso militar). Esse documento, por outro lado, tem correspondentes no Canadá, Europa e Japão.
Além dos EUA, Canadá, Japão e Europa, alguns documentos que protegem a turbina F414G também possuem correspondentes na China.
Em tese, com base nos países escolhidos para depósito dos documentos de patente que protegem a turbina GE F414G, o Brasil poderia enfrentar problemas apenas se comercializasse os caças com os EUA, Canadá, Japão, China e alguns países Europeus. De acordo com a presente análise, os caças produzidos na região do ABC poderiam ser livremente comercializados com toda a América Latina, a África, o Oriente Médio e toda a Ásia com exceção de China e Japão.
Contudo, dado o panorama atual da indústria brasileira e o know-how tecnológico no que concerne a produção de turbinas, a preocupação com a infração das patentes da General Electric é uma preocupação tola – senão tola, certamente exagerada. Isso porque, é bastante improvável que nosso país adquira em um curto espaço de tempo a capacidade de produzir internamente algumas cópias da turbina GE F414G que efetivamente esbarrem na proteção conferida pelas patentes que protegem esses propulsores.
A indústria nacional sequer produz as turbinas para os aviões comerciais fabricados internamente. Os aviões fabricados pela Embraer, por exemplo, empregam motores da fabricante inglesa Rolls Royce e das americanas Honeywell, General Electric e Pratt & Whitney. Evidente que, ao comercializar aeronaves dotadas de turbinas inglesas e americanas, a Embraer não infringe patentes depositadas em nome dessas empresas. Infringiria, se comercializasse cópias dessas turbinas, que não o faz, não somente pelo risco de infração, mas também pela falta de interesse e know-how tecnológico.
Vale lembrar ainda, que as turbinas do caça Gripen NG são muito mais avançadas que as turbinas dos aviões comerciais de transporte civil que conhecemos. Para se ter uma ideia, as turbinas do Gripen NG são dotadas de um sistema after-burner que lhe atribuem um empuxo de 22.000 lb3, uma força suficientemente capaz de impelir uma aeronave a 2.470 km/h (mais que o dobro da velocidade do som), em contrapartida, o Legacy 450, um dos aviões comerciais mais rápidos fabricados pela Embraer é dotado de um motor Honneywell de e 6.000 lb de empuxo, capaz de garantir uma velocidade máxima de 980 Km/h, ou seja, uma velocidade duas vezes e meia inferior à velocidade do caça sueco.
Dito isso, o planejamento da produção de um substituto à turbina GE F414G em solo nacional – antes de dominarmos as técnicas de produção das turbinas dos aviões comerciais que fabricamos internamente – seria, para dizer o mínimo, quixotesco. Guardadas as devidas proporções, uma situação análoga seria uma montadora de ônibus e caminhões que decidisse fabricar motores para carros da Fórmula 1 antes mesmo de dominar as técnicas de fabricação dos motores compreendidos por seus automóveis. Mais absurdo ainda, seria esperar que, em menos de 20 anos (note-se que, boa parte das patentes da turbina da General Electric perdem vigência muito antes disso) teríamos não apenas terminado os primeiros protótipos das turbinas genéricas, mas também iniciado a produção em escala e o comércio internacional desses equipamentos.
Em todo o caso, ainda que constatemos que tal turbina da General Electric não é objeto de pedido de patente ou patente concedida no Brasil, não podemos afastar a hipótese de outros componentes do Gripen NG estejam protegidos por patentes, como noticiado na mídia supracitada, que merece algumas considerações adicionais.
Afinal, em realmente havendo patentes americanas cujos direitos tenham sido estendidos para o Brasil, poderia o governo se eximir de uma acusação de violação patentária, com base no arcabouço legal vigente, se produzisse os caças apenas para uso próprio da força aérea Brasileira? E se decidisse vender parte dos caças produzidos no Brasil para outros países, poderia se beneficiar das mesmas permissibilidades legais?
Para responder a essas indagações, cumpre analisar os artigo 18 e 43 da Lei de Propriedade Industrial Brasileira (lei nº 9.279, de 14.15.1996), além dos tratados internacionais vigentes. Vejamos a seguir.
O artigo 18, inciso I, da LPI invalida patentes que interfiram em questões de segurança nacional, enquanto o artigo 43, inciso I, do mesmo diploma legal não considera crime ou infração a reprodução tecnológica sem fins comerciais. In verbis:
Art. 18. Não são patenteáveis:
I – o que for contrário à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas;
Art. 43. O disposto no artigo anterior não se aplica:
I – aos atos praticados por terceiros não autorizados, em caráter privado e sem finalidade comercial, desde que não acarretem prejuízo ao interesse econômico do titular da patente;
Convenhamos que o afastamento da acusação de violação por evocação desses dois artigos e seus incisos não estaria isento de críticas. Afinal, enquanto seria difícil afirmar que toda e qualquer patente envolvendo instrumentos bélicos seria contrária à segurança nacional, seria igualmente tortuoso convencer o titular da(s) patente(s) violada(s) de que a fabricação de caças por parte do governo brasileiro, utilizando a tecnologia objeto de suas patentes, não lhe acarretaria em prejuízo econômico. Da mesma forma, o titular da patente também poderia alegar, bastante razoavelmente, que a fabricação de caças pelo governo tem óbvia finalidade comercial e econômica (lucro indireto), afinal, qual seria o objetivo de um conflito armado entre países que não sua defesa econômica ou comercial?
Por outro lado, se a legislação brasileira não for suficiente para chancelar a legalidade do ato, o governo brasileiro poderia recorrer ao artigo 73 do acordo TRIPs, abaixo transcrito, em sua defesa:
“[Nothing in this Agreement shall be construed] to prevent a member from taking any action which it considers necessary for the protection of its essential security interests.”
Ainda que a aplicação direta do artigo 73 do TRIPs possa ser questionável, a internalização da norma poderia resolver o dilema. Afinal, a fabricação dos caças facilmente poderia ser justificada como matéria de segurança nacional e um Estado soberano não encontraria grandes dificuldades em defender seus interesses em prol da segurança nacional.
Corrobora com isso o fato de que a própria força aérea americana já impediu a concessão de patentes para diversos componentes aeronáuticos de uso militar, recorrendo ao artigo 181 da Lei de Patentes Americana (35 U.S.C. 181 Secrecy of Certain Inventions and Withholding of Patent). O artigo 35 U.S.C. 181 veta a publicação e a concessão de patentes que venham ocorrer em detrimento da segurança nacional americana. Evidente que, se a norma presta a negar a concessão, prestará, também, para anular uma eventual concessão indevida.
A jurisprudência dos EUA revela, pelo menos, três casos em que a força aérea americana interferiu na concessão de patentes pelo USPTO (o escritório americano de patentes) invocando o artigo 181 da Lei de Patentes Americana:
McDonnell Douglas Corp. v. United States, 670 F.2d (Ct. Cl. 1982) Farrand Optical Co. v. United States, 197 F. Supp. (S.D.N.Y. 1961)
Alton B. HornBack v.United States, 405 F.3d (S.D.Cal.2010)
Nesse ponto, seria defensável a produção interna dos caças Gripen para uso da força aérea brasileira, ao menos do ponto de vista da segurança nacional e soberania do Estado.
Por outro lado, uma problemática inteiramente nova se instauraria se o Brasil intencionar comercializar parte da produção dos caças Gripen NG com outros países. Por óbvio, causaria desconforto alegar interesses de segurança nacional em se objetivando fins estritamente comerciais no uso de componentes, sejam esses componentes de uso militar ou civil.
Por todo o exposto, no que se refere ao âmbito da propriedade industrial, entendemos que, a princípio, seria defensável a produção dos caças suecos no Brasil, principalmente se destinada em prol da segurança nacional, sendo questionável seu o uso da tecnologia envolvida com fins de comercialização com outros países.