Quem nunca escutou que no idioma chinês existe um hieróglifo para a palavra “crise” que é formado a partir de um segundo sinal de escrita, que representa a palavra “oportunidade”? Quem nunca ouviu alguém dizer que basta retirar o “S” da palavra crise para que se obtenha a palavra “crie”?
A ligação entre crise e oportunidade é lugar comum, chega a ser vulgar a sua utilização. Esse clichê já foi utilizado em demasia por escritores e palestrantes das mais diversas áreas, sobretudo pelos autores de livros de autoajuda.
Também é lugar comum que o país em que vivemos encontra-se em uma crise de proporções homéricas. Não é preciso apontar dados ou fatos relevantes que levem o leitor a constatar que ainda estamos em recessão. A não se que o leitor tenha acabado de sair do cativeiro ou do coma profundo ele não terá dúvidas sobre esse veredito.
Já dissemos que o meio editorial é craque em apontar uma relação simbiótica entre “crise” e inovação. Poucas fontes, contudo, são capazes de dar exemplos práticos de inovações que brotaram do caos. Temos a seguir, três exemplos práticos de que crise é realmente sinônimo de mudança e que, quanto maior a crise, maiores e mais rápidas as transformações por ela desencadeadas.
O Primeiro Computador e a Máquina Enigma [1]
Em 1925, no intervalo entre a primeira e a segunda guerra mundial, a Alemanha nazista desenvolveu uma máquina de criptografia de dados para comunicação entre seus militares.
A traquitana desenvolvida pelos alemães compreendia um aparelho de transmissão e recepção de sinais de rádio e um decodificador eletromecânico, dotado de um refletor e três rotores manuais, cada qual compreendendo 26 pontos metálicos. Além dos três rotores e do dito refletor, para dificultar ainda mais a quebra de seus códigos, havia uma placa externa dotada de dezenas de plugs, associáveis a 10 cabos elétricos distintos, que poderiam ser reposicionados na placa, embaralhando ainda mais os dados trabalhados por esse equipamento.
Quando a enigma recebia um input qualquer – a letra ‘R’, por exemplo – esse input era convertido (ou cifrado) em, pelo menos, quatorze códigos diferentes antes de entregar uma segunda letra como output. Para complicar, os rotores giravam automaticamente no decorrer do uso da máquina, impulsionando uns aos outros, tal como o medidor de quilometragem no painel de um veículo.
Para programar a máquina, todos os dias os alemães abriam seu livro de códigos (que era trocado todos os meses) e buscavam informação de como ajustar os rotores e plugs para a leitura das mensagens daquele dia.
A máquina era tida como indecifrável por quem quer que fosse. E de fato, era humanamente impossível decifrar manualmente o código da máquina nazista, que possibilitava 158 milhões de milhões de milhões (1,58 x 1020) de combinações distintas. Isto significa dizer que, fazendo uso de uma única tentativa randômica de descobrir a programação diária da máquina, o usuário teria uma chance em 158.000.000.000.000.000.000 de acertar a combinação do dia para a leitura das mensagens do front alemão. Só para ter um parâmetro, uma pessoa que vive até os 80 anos, tem aproximadamente 2,5 x 109 segundos de vida.
Apesar de tida como indecifrável, em meados de 1940, o matemático britânico, Alan Turing, conseguiu driblar a complexidade do aparelho nazista mediante a construção de uma segunda máquina eletromecânica, um equipamento capaz de realizar computações em tempo real para decifrar a intricada criptografia da enigma.
O equipamento eletromecânico de Turing, denominado BOMBE, é considerado por muitos o primeiro computador da história da humanidade, berço de toda a tecnologia da computação moderna. O dispositivo criado por Turing é o percussor de todos os smartphones, computadores de bordo, calculadoras, laptops, palmtops e desktops que utilizamos em nossa vida moderna.
Quiçá, não fosse o enorme peso e a truculência da IIGM – uma das maiores crises morais e éticas vivenciadas pela humanidade – o governo britânico e a equipe de Turing não teria feito tamanho esforço para solução de um problema, que por fim, trouxe à humanidade uma de suas invenções mais onipresentes, o computador.
O carro a álcool, a OPEP, e a crise do petróleo de 1973 [2]
Em 1973, a organização dos países produtores de petróleo (OPEP), composta por Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Venezuela promoveu um cartel que decidiu elevar abruptamente o preço do barril de petróleo a 400% de seu valor corrente, provocando uma catastrófica recessão mundial.
O Brasil, como todos os países importadores de petróleo, sofreu muito com a elevação artificial promovida nessa commodity.
Para contornar a crise e diminuir a dependência no óleo mineral, o governo brasileiro criou o programa Pró-Álcool. Dentre os objetivos desse programa estava o investimento em tecnologias que substituíssem o petróleo por outras fontes de energia, nas mais diversas atividades industriais. Foram oferecidos vários incentivos fiscais e empréstimos bancários para os produtores de cana-de-açúcar e para as indústrias automobilísticas que desenvolvessem carros movidos a álcool.
Em meados da década de 70 o engenheiro brasileiro Urbano Ernesto Stumpf inventou o carro a álcool e em 1979 entrou no mercado o primeiro carro a álcool do mundo, o Fiat 147. Dentre as modificações introduzidas nos primeiros veículos estavam o revestimento das partes internas do motor com uma camada níquel para evitar a corrosão do metal e a elevação da taxa de compressão na câmara de combustão. Atualmente, a indústria nacional praticamente não fabrica mais carros a álcool, mas produz carros dotados de motores flex que rodam tanto com gasolina quanto com álcool.
O carro a álcool é uma invenção importante, não apenas porque ele permite uma alternativa à dependência do petróleo, aliviando o bolso do consumidor, mas também pelo fato de que o álcool é um combustível renovável, que não contribui para poluição do meio ambiente na mesma intensidade que os combustíveis derivados do petróleo. Pelo menos em tese, todo o carbono lançado ao ar por um veículo movido a álcool pode retornar à estrutura da cana-de-açúcar utilizada na produção desse material. Enquanto a queima do combustível produz CO2, a fotossíntese da cana de açúcar converte CO2 em massa orgânica. Dessa forma, o ciclo do carbono se perpetua na transição entre a cana-de-açúcar, álcool e gás carbônico.
Os satélites de telecomunicação e a crise dos mísseis cubanos [3]
Em maio 1962, sob recomendação das altas patentes soviéticas, Fidel Castro instalou uma série de mísseis soviéticos dotados de ogivas nucleares na ilha comunista, a apenas 90 milhas de distância dos EUA. A instalação dos mísseis soviéticos não era artimanha de ditador carente de confete e publicidade (estilo Kim Jong-un), era, na verdade, uma séria retaliação cubana a uma fracassada missão americana de retirada do governo de Castro, aliada a uma represália Soviética aos mísseis americanos espalhados pela Europa ocidental.
O plano de Fidel e do Kremlin passava em sigilo até que, em outubro de 1962, aviões de espionagem americanos que sobrevoavam a ilha caribenha descobriram quase que por acaso o arsenal atômico cubano.
Imediatamente após a ciência do ocorrido, o presidente americano J. F. Kennedy estabeleceu uma série de reuniões com seu alto comando militar, tentando encontrar uma saída àquela delicada situação. Em 22 outubro de 1962 JFK foi à televisão anunciar a toda nação americana os planos de Fidel e de quebra ainda enviou uma ameaça ao ditador caribenho: ou Fidel removia os mísseis recém instalados, ou os Estados Unidos “tomariam sérias medidas para sua defesa”.
O mundo inteiro ficou aterrorizado. Quem tivesse no peito um coração pulsando estava apreensivo. Pela primeira vez na história da humanidade, toda a civilização humana estava à beira de um precipício. A única coisa que separava normalidade vigente de um holocausto nuclear era o clique de um botão.
Felizmente, a crise dos mísseis cubanos não acabou em catástrofe. Os líderes de ambos os lados (soviético e americano) encontraram uma solução diplomática, que envolveu o desarmamento proporcional de ambas as nações.
A referida crise de mísseis foi apenas um dos episódios de provocação e embate entre as duas grandes potências mundiais nos tempos da guerra fria. Além de se provocarem e fazerem ameaças veladas rotineiramente, durante a guerra fria as duas potências antagônicas brigavam intensamente pelo primeiro lugar na liderança do desenvolvimento tecnológico mundial.
Ser pioneiro no desenvolvimento tecnológico global tinha duas vantagens igualmente poderosas: o lado mais tecnologicamente desenvolvido seria mais bem quisto pelo mundo e tanto o capitalismo quando o socialismo buscavam esse troféu para homologar sua autopropagação de sistema ideal; por outro lado, quanto mais domínio tecnológico detivessem, maiores e melhores os arsenais militares de cada uma das duas potências.
Uma das tecnologias que sem dúvidas servia aos dois propósitos era o lançamento de foguetes. Lançar bem um foguete é útil tanto quanto se deseja enviar o primeiro homem ao espaço ou à lua, quanto quando se deseja fazer com que um míssil decole do meio de um continente e atinja a capital do estado rival a milhares de quilômetros de distância, em um voo sem escalas.
Além de permitir que o homem viajasse pelo espaço ou pisasse na lua, foguetes foram indispensáveis à existência dos satélites de telecomunicação.
Lançar um satélite no espaço pode ser ainda mais complexo que disparar um míssil ou enviar um homem à gravidade zero. Isto porque, para que o satélite se mantenha em órbita ao redor da terra depois de deixar a estratosfera, ele terá de correr a uma velocidade constante, para que seu deslocamento tangencial à curvatura da terra compense a força da gravidade exercida pelo planeta. Em outras palavras, o satélite tem de estar sempre caindo e sempre saindo pela tangente, a compensação entre essas duas grandezas é que estabiliza a altura desse elemento e mantém o satélite circulando a terra.
Para um satélite muito próximo da superfície da terra, a 500 km de altitude, por exemplo, a velocidade necessária para que esse equipamento não mergulhe no oceano ou colida com algum continente é de 10 km/segundo (= 36.000 Km/h). Isso é 360 vezes mais veloz que um veículo de passeio convencional e 52 vezes mais veloz que um avião a jato, por exemplo.
Agradeça à crise dos mísseis cubanos e aos demais acontecimentos da guerra fria que impulsionaram o homem à capacidade de lançamento de satélites. Não fossem por esses dramáticos eventos, o leitor não teria o GPS para navegação veicular, a TV por assinatura, a comunicação intercontinental sem fio, a previsão do tempo, a navegação aérea e outras tantas benesses da vida moderna.
Conclusões:
Assim como um empregado desmotivado altera a sua rotina de trabalho após receber uma bronca de seu supervisor, a humanidade também parece depender de solavancos e pontapés do destino para que trilhe com afinco o caminho do progresso e da inovação.
Como diria Victor Hugo, a água que não corre forma um pântano e a mente que não trabalha forma um tolo. Talvez o brocardo sirva tão bem ao indivíduo quanto à coletividade. Para aquelas sociedades afligidas por crises – sejam estas morais, econômicas ou políticas – resta encarar os fatos com seriedade, buscar saídas inovadoras e ter bastante persistência. Somente quando encaramos uma crise de frente e buscamos saídas alternativas à rota que nos levou ao colapso, nos tornamos capazes em transformar limões em limonada.
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[1] Fontes: nsa.gov; Alan Turing and the Enigma Machine de Alan Moon; Enravelling Enigma de Maurice Freedman.
[2] Fontes: Programa do Proálcool e o Etanol no Brasil – Ednilton Tavares de Andrade; Ciência em Tempo de Crise – José Israel Vargas Editora UFMG; Indústria Comemora 30 Anos Do 1º Carro A Álcool No País – G1.Com – 2009.
[3] Fontes: history.com, BBC History File: Cuban Missile Crisis, Reflections on the Cuban Missile Crisis – Raymond Garhoff; The Cuban Missile Crisis – E. J. Carter
(foto de capa: Robert Metz on Unsplash)